sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O Primeiro Contador (Parte Dois).


            Bukhard largara o débil Vincent no gramado, ainda inconsciente, contemplando o incrível cenário criado pelas Estações (os seres fantásticos, diferente de nós, acreditam que as estações, Verão, Inverno, Primavera e Outono, são, na realidade, Senhores Supremos, os quais criaram a Terra e as coisas, sendo elas bonitas ou feias inteligentes ou estúpidas, corajosas ou covardes).
            Fora uma questão de segundos para o efeito do feitiço de Lugar Nenhum dissipar-se da mente de Lupos, e quando isso ocorreu, o irmão do meio escancarou a boca e arregalou os olhos, totalmente encantado com o que via — realmente, é praticamente indescritível o que os dois estavam presenciando; uma imagem que, para os humanos, só é possível vislumbrar em quadros.
            — Não acredito que conseguimos atravessar a divisa... — murmurou Lupos lívido de surpresa.
— Sinto pena daqueles que nos acompanhavam. — disse Bukhard.
—... E é melhor eu ter pena de você, Bukhard!
Os dois giraram nos calcanhares e depararam com um furioso Vincent, o qual empunhava uma afiada adaga.
— Se eu não o silenciasse, estaríamos presos na névoa encantada. — retrucou Bukhard com frieza, voltando-se para as montanhas.
Vincent, tentando vasculhar palavras para poder retorquir o irmão mais novo, guardou a adaga em seu bolso e postou-se ao lado de Lupos.
— ALÔ!!! — berrou uma grossa e audível voz, causando um ligeiro tremor.
Os três Dippet viraram-se para o dono da ressonante voz, e imediatamente recuaram vários passos; evitando a enorme pata de um elefante.
— COMO VÃO CARO RAPAZES? — rugiu o distinto ser que o montava o onipotente animal.
Para um elefante adulto — supôs Bukhard ao analisar o tamanho —, era bem alto. Deveria ter em torno de sete metros; as presas terminavam em um perfeito caracol; os minúsculos olhos fuscos perdiam-se a cada movimento largo das orelhas de abano.
— DEVEM SER HUMANOS! — concluiu estranho ser, ainda montado. — CONTINUEM A IGNORAR MINHA PERGUNTA E PISAREI EM VOCÊS! — brandiu o homem mostrando uma ligeira impaciência.
— SOMOS OS TRÊS DIPPET, CARO SENHOR. — gritou Bukhard em resposta, fazendo uma curta reverencia. — CHAMO-ME BUKHARD, E ESTES SÃO LUPOS E VINCENT.
— MUITO BEM, BUKHARD, VINCENT E LUPOS. PODERIAM ME INFORMAR QUAL É O OBJETIVO DE SUA VINDA?
Os três entreolharam-se surpresos.
— CARO SENHOR — começou Lupos — ANTES DE RESPONDER A ESSA PERGUNTA, PODERIA NOS COLOCAR NO DORÇO DE SUA MONTARIA? DESTA FORMA NÃO PRECISAREMOS BERRAR.
O estranho ser, de alguma forma, ordenou ao elefante que, com a trompa, envolvesse os três e os colocasse ao seu lado.
Sabemos muito bem que encarar os outros com olhares perplexos não é nada cortes, mas quando finalmente toparam com o cavalheiro, não poderiam deixar de lançar expressões indagativas.
O cavalheiro, na cabeça, usava um turbante azul-marinho; vestia uma jaqueta de cetim verde-esmeralda. Mas o que realmente chamava a atenção, não eram as vestes e sim, a fisionomia do ser: da cintura pra cima, o corpo de um home, contudo, da cintura pra baixo, estava costurada no elefante, e onde deveria estar os olhos, encontravam-se duas órbitas vazias.
— Uma longa história, a qual, eu não tenho a mínima vontade de contar, por isso não insistam. — disse o hibrido prontamente. — E antes de tudo, como um bom Carminho, dou-lhe as boas vindas.
— Carminho, este é o seu nome? — indagou Vincent.
— Não, é o nome dado a minha espécie. Chamo-me Vinguarda, ex-membro do conselho Carminiano. — respondeu com irritação.
Vinguarda mirou para as montanhas: os raios solares acertavam os cumes dos morros, anunciando sua despedida.
— É melhor irmos andando. Tem feito muito frio ao anoitecer. — começou o hibrido, dando um leve soco nas costas do elefante, o qual retomou seu trajeto. — Como ia dizendo, os três devem ter algum objetivo.
— Não, não temos. — disse Lupos.
— Isso é um problema, sem um motivo, vocês jamais poderão voltar ao seu mundo.
— E por que faríamos isso? — interpôs Vincent.
— Se continuarem neste mundo, desaparecerão, pois a história de vocês fora iniciada no mundo hostil do homem. Permaneça muito tempo aqui, e seus corpos serão varridos de volta a Lugar Nenhum.    
 — Ninguém nos informou sobre isso! — exclamou Bukhard atônito.
— Claro que não contaram. Se contassem, vocês não teriam realmente um objetivo, seria apenas uma desculpa para atravessar a divisa... Ou então, vocês, em tempos passados, poderiam ter tido um objetivo, mas ao adentrar em Lugar Nenhum o feitiço natural do local deve ter causado algum dano em suas mentes... O que é normal! — garantiu Vinguarda rapidamente, notando as expressões ansiosas dos três Dippet.
Os quatro ficaram um bom tempo sem dizer qualquer coisa.
Após horas e horas, o elefante finalmente parou. Estavam no alto de uma colina, a qual era extremamente privilegiada: era possível ver todas as constelações.
—Seria Belman? — quis saber Vincent.
— Não, este povoado deve ser o mais pobre de nosso mundo, por isso o vilarejo não tem nome. — respondeu Vinguarda em tom sério. — Adoraria levá-los à minha casa. Porém, como podem ver, eu sou um tanto grande e, creio que vocês não aprovariam uma cama a qual não poderiam subir ou descer. — e dizendo isso, a grosseira tromba envolveu a cintura dos três e os colocou bruscamente no chão.
— Há uma estalagem no centro do povoado. — comentou Vinguarda. — E lembrem–se, tentem recordar o motivo.
Os três irmãos observaram Vinguarda distanciar-se pesadamente e vagarosamente, e quando não puderam mais vê-lo, começaram descer a colina, em direção ao tristonho povoado.
O vilarejo sem nome não era nada amigável. Havia vários seres vestindo trapos e jogados nas ruas tortuosas e obscuras; não mostravam nenhum sinal de resistência.
Não fora difícil procurar o estalagem central, pois, conforme o velho fauno dissera o povoado sem nome continha apenas uma estalagem.
— Olá caros visitantes. — cumprimentou, no exato momento em que os três entraram na estalagem, uma criatura semelhante a um corvo, vestindo um pomposo terno lilás. — Soube pelo meu caro irmão Paradal, que vocês estavam procurando minha estalagem.
— Não topamos com nenhum outro corvo... — explicou Vincent, tentando esconder seu desprezo pelo terno ridículo do corvo.
— Ah, mas quem disse que eu sou um corvo? Corvos não falam. — retrucou surpreso. — Sou um besouro!
Os três entreolharam-se pasmos.
— De qualquer forma, receio que vocês pretendem passar uma noite aqui, não? É evidente que vão, seu palerma... — sussurrou, agora, para si mesmo. — Quantos tempos passaram em minha estalagem?
— Apenas uma noite. — respondeu Bukhard, pousando seu fardo sobre uma mesa.
— Perfeito... Eu cobraria cinqüenta pinhas, mas como vocês vêem do mundo do homem, será por minha conta. Chamarei meu Paradal para mostrar o cômodo.
O corvo, que se considera um minúsculo besouro, agarrou um delicado sino, posto ao seu lado, e o chacoalhou, emitindo um delicado tilintar metálico.
Sem rodeio, um corpulento besouro surgiu zunindo velozmente pela porta dos fundos, usando o mesmo terno berrante do suposto irmão.
— Queiram me acompanhar cavalheiros. — pediu cordialmente.
Os três Dippet subiram dois andares; entraram no corredor iluminado por uma lamparina, e acomodaram-se no quarto do fim do corredor mofado.
— Serviremos o jantar dentre vinte minutos. — informou a voz zombeteira do besouro. — Hoje teremos uma surpresa gratificante.
Vincent agradeceu pela hospitalidade e fechou a porta, porém, ainda sim era possível ouvir o bater frenético das asas de Paradal.
Bukhard sentia-se estranhamente desconfortável, e ao mesmo tempo, fascinado. Estar em um lugar incrivelmente espetacular como aquele, onde só é possível visitar em livros fantásticos, era como realizar um sonho. Contudo, saber que era crucial a sua volta o deixava profundamente angustiado e nervoso.
“Devo ter um motivo...”, pensava angustiado, “Mas qual será?...”
Os três irmãos tomaram um merecido banho, obviamente, como havia apenas uma banheira e um balde, demorou mais do que vinte minutos — devemos ter em mente, que no mundo fantástico, eles não contem eletricidade, hidroelétricas, encanamentos e coisas do gênero, por isso, Lupos fora encarregado de aquecer a água após cada banho.
Quando finalmente os três estavam limpos e confortados, desceram os dois andares.     
 O minúsculo restaurante estava fervilhando de criaturas diversas, mas nenhuma delas haviam sido servidas.  
— Ora, ora, finalmente! — exclamou uma voz grossa. — Permitam-me apresentar.
Um velho de barba prateada levantou-se desajeitado da cadeira em que se encontrava, momentos antes de encarar os Dippet.
— Sou Alfons Carcalho XX. — disse com um sorriso estampado no rosto, lhes dando um forte aperto de mão. — Não precisam dizer seus nomes, sou amigo de Vinguarda. Quando aquele divino Carminho me contou sobre a vinda dos três até este povoado desgraçado, vim correndo.
Bukhard notou alguns olhares hostis, apontados diretamente para o velho insensível.
— Sou um Contador, praticamente um historiador, e pretendo acompanhar vocês até Belman. Não onde vocês pretendem chegar?
— Sim. Sabe chegar lá? — disse Vincent prontamente.
— Se sei? Meu jovem, eu moro em Belman! De qualquer maneira, vim aqui, não só para me apresentar à vocês, e sim, para contar algo que aconteceu há muitos séculos atrás. — falou Alfons, estirando-se novamente em sua cadeira. — Como sou um excelente Contador, membro de um imane conselho literal, é meu dever contar aos estrangeiros fatos passados que ocorreram em nosso mundo. Talvez isso ajude em algo...
(continua)...

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